Saúde

Variações na sequência do DNA humano influenciam persistência de inflamação na raiz do dente
Pesquisa identifica fatores genéticos associados ao menor risco da doença, o que abre novos caminhos para tratamentos mais personalizados em endodontia
Por Felipe Medeiros - 03/12/2025


Fotomontagem feita com fotos de Freepik e Freepik


Pesquisadores do Laboratório de Pesquisa em Endodontia da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) da USP, sob coordenação do professor Manoel Damião Sousa Neto, encontraram pequenas variações genéticas no DNA humano que podem explicar as causas de uma inflamação bucal crônica, a periodontite apical persistente (PAP). As variações (polimorfismos genéticos) estão em dois genes ligados ao controle da inflamação e ao metabolismo ósseo, respectivamente. Os resultados da pesquisa ajudam a entender por que alguns indivíduos alcançam cicatrização completa, enquanto outros continuam com a inflamação, mesmo após um procedimento odontológico bem executado.

A periodontite apical é uma inflamação crônica que ocorre na ponta da raiz do dente (periápice), geralmente como consequência de cárie profunda ou trauma que leva à necrose da polpa dental. Nesses casos, bactérias atingem o canal radicular e provocam infecção no osso ao redor da raiz. O tratamento mais indicado é o tratamento endodôntico (tratamento de canal), que remove a polpa comprometida e sela o espaço ocupado por ela. Entretanto, em cerca de 10% a 15% dos casos, a inflamação persiste caracterizando a PAP mesmo após um procedimento bem-feito.

Publicado na revista Archives of Oral Biology, a pesquisa contou com a participação do professor Igor Bassi Ferreira Petean, do Departamento de Odontologia Restauradora da Forp. Segundo ele, o estudo buscava justamente uma resposta às diferenças nas recuperações de pacientes que recebem o mesmo tratamento da PAP. “Começamos a perceber, nos acompanhamentos clínicos, que pacientes submetidos a protocolos técnicos semelhantes apresentavam respostas distintas. Isso sugeria que fatores individuais, incluindo características sistêmicas e genéticas, poderiam influenciar o prognóstico.”

Aspectos genéticos relacionados à inflamação e metabolismo ósseo

Os polimorfismos genéticos podem modular a suscetibilidade a doenças e a forma como o organismo responde a estímulos inflamatórios. No caso da periodontite apical, genes ligados à inflamação e ao metabolismo ósseo parecem desempenhar um papel importante. Segundo o docente, “a investigação dessas interações entre polimorfismos e sinais clínicos da inflamação pulpar tem se mostrado um campo promissor de pesquisa em endodontia, pois ajuda a compreender por que a doença pode persistir mesmo após tratamentos tecnicamente adequados”.

Durante a pesquisa, foram analisados 423 indivíduos brasileiros que haviam passado por tratamento de canal. Destes, 172 apresentaram periodontite apical persistente e 251 tiveram completa cicatrização. A seleção excluiu casos de falha claramente técnica, como a fratura vertical de raiz e o tratamento endodôntico insatisfatório, para focar as situações em que outros fatores poderiam explicar a manutenção ou não do problema.

A coleta do material genético foi feita a partir da saliva dos pacientes. “Realizamos o bochecho com solução salina, coletamos as amostras e extraímos o DNA. A análise de genotipagem foi conduzida por PCR em tempo real com sistema TaqMan, metodologia que permite a identificação simultânea dos alelos presentes em cada amostra com elevada sensibilidade e especificidade”, detalha Petean.

Foram investigados genes relacionados à resposta inflamatória (SOCS1, TNF-? e seus receptores TNFRSF1A e TNFRSF1B) e ao metabolismo ósseo (RANK, RANKL e OPG). Cada um deles está ligado a substâncias que regulam a inflamação e a remodelação do osso que envolve a raiz do dente.

Influência da genética no sucesso dos tratamentos

Os achados mostraram que dois polimorfismos específicos estavam associados ao menor risco de periodontite apical persistente. “Pacientes com o alelo A no gene TNF-? e aqueles homozigotos para o alelo T no gene RANKL apresentaram menor risco de desenvolver a doença. Isso indica que essas variantes podem exercer efeito protetor”, afirma o especialista.

No caso do TNF-?, o alelo A já havia sido relacionado em outros contextos a níveis reduzidos de citocina – proteínas liberadas pelas células de defesa que funcionam como mensageiras do sistema imunológico, regulando a intensidade da inflamação – o que atenua a resposta inflamatória. Para o RANKL, o genótipo TT, que indica que o indivíduo possui duas cópias idênticas do alelo T, está associado à regulação mais equilibrada da remodelação óssea. Juntas, essas variantes parecem favorecer a cicatrização após o tratamento.

Outros genes analisados — SOCS1, TNFRSF1A, TNFRSF1B, RANK e OPG — não apresentaram associação significativa isoladamente. Mas ao avaliar interações entre eles, o estudo identificou um efeito combinado entre TNF-?, TNFRSF1B e RANKL, sugerindo que o risco ou proteção à doença pode estar ligado a redes de genes, e não apenas a marcadores isolados.

“Esses resultados reforçam a ideia de que a susceptibilidade à PAP não depende apenas de fatores técnicos ou microbiológicos, mas também da interação entre genes de resposta inflamatória e metabolismo ósseo, o que abre perspectivas para estratégias personalizadas em endodontia”, explica o professor.

Desafios e perspectivas para a Odontologia de Precisão

A amostra foi composta apenas de pacientes da região Sudeste do Brasil, o que pode limitar a generalização dos achados para populações de outras origens genéticas e ambientes distintos. Além disso, variantes genéticas isoladas explicam apenas parte do risco: fatores epigenéticos, ambientais e técnicos — como a qualidade do tratamento e da restauração — também influenciam os desfechos. 

“Os resultados devem ser interpretados com cautela, entretanto, essas limitações não invalidam nossos resultados, mas reforçam a necessidade de replicação em amostras maiores, diversificadas e etnicamente estratificadas”, afirma.

Por outro lado, os achados fortalecem a ideia de que a PAP é resultado de múltiplos determinantes e que marcadores genéticos podem ajudar a identificar pacientes com maior ou menor suscetibilidade ao insucesso. Segundo Petean, “isso abre caminho para protocolos mais seguros, terapias adjuvantes voltadas a mediadores inflamatórios ou ao metabolismo ósseo e estratégias individualizadas de acompanhamento clínico”.

Para a sequência dos estudos sobre o tema é importante, entre outros fatores, ampliar a amostra, validar os resultados em diferentes populações e integrar análises genéticas (investigam diretamente o DNA e suas variações), epigenéticas (examinam modificações que afetam a atividade dos genes sem alterar a sequência do DNA) e ômicas (englobam o estudo de grandes conjuntos de dados biológicos, como proteínas, metabólitos e RNA), aprofundando a compreensão dos mecanismos moleculares.

Paralelamente, a equipe trabalha no desenvolvimento de modelos preditivos que combinem dados clínicos, radiográficos e genômicos, com o objetivo de apoiar decisões personalizadas em endodontia. “Nosso objetivo é consolidar uma base científica sólida para aplicar os princípios da Odontologia de Precisão, aproximando cada vez mais os tratamentos de uma abordagem personalizada e eficaz”, conclui o pesquisador.

 

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